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09
Mai 11
publicado por paraisobiblioteca, às 00:00link do post

Acordava primeiro que ele e corria à casa de banho. Lavava a cara e os dentes, aplicava o corrector de olheiras e bronzeava as bochechas. Penteava-se energeticamente, de cabeça baixa (ensinara-lhe a mãe). O espelho dizia-lhe que precisava de mudar a cor do cabelo, de fazer uma plástica ao nariz e aumentar os seios. O namorado, já desperto, achava fascinante ela acordar sempre tão bonita e com hálito a mentol. Joana, és tão linda.

 

Aprovação do homem: verificado.

 

Vestia com classe e usava as melhores jóias. As unhas pintadas de vermelho galgavam pelo teclado do computador e a voz, eficiente e sedutora, respondia sempre ao primeiro toque do telefone. Chegava mais cedo que os colegas e só saía quando verificava pela décima vez que todas as tarefas haviam sido cumpridas. O chefe mandava-a embora e ela - axilas transpiradas, mãos agitadas, pêlos eriçados - esperava que ele a congratulasse pelo trabalho. Pode ir, Joana. Está tudo óptimo.

 

Aprovação do patrão: verificado.

 

No bar da avenida principal, as amigas aguardavam. Ela entrava, passo atrás de passo, o cabelo em sintonia com o ritmo da música. A garganta, vestida em ouro - branco, o mais caro! -, engolia um azedo nervoso e o lábio tremia discretamente. Passava os olhos por cada uma delas, comparando mentalmente as rugas, as belezas, os cabelos brancos, as roupas. Beijos numa, beijos noutra. Um cheiro a perfume melhor que o seu: insegurança (inveja?). Beijos na da esquerda; beijos e abraços na última, a mais chegada. Joana, onde compraste esse vestido? É espectacular!

 

Aprovação das amigas: verificado.

 

Quarta-feira de manhã e as notas dos exames acabavam de ser afixadas. Sentia-se tola por, com aquela idade, se ter aventurado numa licenciatura. E se falhasse? E se o professor a olhasse de alto a baixo, com desdém, com olhinhos pequenos? E se fosse a pior da turma? Pavor. Pior, vergonha. Ouvia, até, as gargalhadas da família e dos conhecidos, como um coro que cantarolava um novo êxito da rádio: És tão estúpida! Entrou na sala, dirigiu-se ao placar e respirou um ar cortante como vidro. Procurou o nome. Joana: Introdução ao Direito: 2, Direito Constitucional: 4, Economia Política: 8, Direito Romano: 6.

 

Aprovação dos professores: não verificado.

 

Joana, 35 anos. Olhos castanhos, cabelo louro, pele clara. Um metro e sessenta e sete. Sinais particulares: tatuagem no tornozelo; orelhas furadas. Causa da morte: overdose por anti-depressivos - overdose de insegurança.

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