Sempre tive medo de morrer sem saber que morrera; de acordar sem estar realmente acordada. Eu tinha um pavor hediondo de despertar de uma inércia qualquer e observar-me estendida em algum lugar, com olhares indiscretos sobre mim. Não deve haver sentimento pior que a morte sem aviso. Não temos tempo para despedidas, para conselhos nem pedidos. Não nos pomos bonitos e, muito menos, estamos habilitados para saber que aquele corpo teso e frio é o nosso e que por mais que o abanemos ele não ressuscitará.
Felizmente, eu soube em que dia iria morrer.
Eu padecia de uma leucemia que me roubava os dias à vida. Era uma luta constante entre doença e cura. Elas brigavam a todo o tempo, tentavam mostrar a sua superioridade em relação à outra e, por vezes, chegavam a agredir-se em disputas duras. A doença era feia e mal-arranjada, a cura parecia-me sempre tão esbelta e com uma expressão de paz. Toda a plateia torcia pela cura. O sangue, adepto fervoroso daquela, organizava bonitas claques de apoio, porém, a doença era superior em quase todas as batalhas e, por fim, venceu a guerra.
Andrés, o meu marido, sofria mais que eu própria, apesar de não ter nenhuma guerrilha no seu interior. A sua dor concentrava-se por completo no seu coração e, de cada vez que eu gemia de desconforto, aquele coração bondoso mirrava. Estávamos casados há 31 anos, a maioria deles felizes. Não tivemos filhos e, sinceramente, nunca senti vontade para tal. Andrés viajava demasiado por todo o nosso México e eu ficava muitas vezes sozinha, escrevendo romances. Amávamo-nos mas não nos prendíamos, respeitávamo-nos mas não nos submetíamos. E era bom desse jeito.
Descobri a minha doença por acaso. Já há algum tempo que me sentia mais débil, menos disposta a certas actividades mas desliguei-me desses sintomas. O ser humano é incrível. Renega sempre que o mal bata a porta, aliás, acha que ele só visita as outras pessoas. Marquei uma consulta praticamente obrigada por uma amiga e lá fui, certa de que era apenas cansaço. A notícia atingiu-me com força e mastiguei-a sozinha, demorando duas ou três semanas para revelar ao meu marido o que tanto me afligia. O choque dele foi igual ou maior que o meu e durante muitos dias choramos, às vezes sozinhos, outras vezes em dupla. Até que, num certo momento, numa certa ocasião, não me lembro quando, digerimos e aceitamos a brutal e inesperada realidade. Foi nessa altura que Andrés pegou na minha mão e me disse que iríamos combater juntos, com tanta franqueza que me dilacerou o coração. Eu acreditei não acreditando. Assentei com a cabeça e um sorriso que recebia lágrimas mas, no fundo, sabia que não haveriam forças suficientes contra aquele inimigo.
O primeiro ano foi mais ou menos tranquilo. Fiz tratamentos que não serviriam de nada, dei esperanças vãs a quem as precisava ouvir. Eu, apesar de ser a doente, era a única pessoa capaz de levantar a cabeça aos que carpiam por mim. Eu sofria de dores físicas, de mal-estares e enjoos. Eles sofriam com a visão cruel da minha debilidade juntamente com aquele mau agoiro que anunciava a minha morte a qualquer momento. Eu tinha de prestar auxílio, de amparar essas depressões pelas quais os meus familiares e amigos teimavam em ficar. Ainda assim, nunca me faltou amor. Fui acarinhada, mimada e acudida em tempos de crise. Jamais enfrentei uma quimioterapia sozinha. Estava sempre alguém do meu lado, segurando a minha mão e rezando pela salvação do meu corpo fraco.
Meses antes da minha partida, eu senti que estava prestes a deixar o mundo físico e, na verdade, eu estava preparada para conhecer o outro lado. Mesmo estando à beira da morte, eu vivia esses últimos bocados satisfeita por poder cronometrar todos os instantes. Cada minuto tinha a sua actividade, o seu sentido, a sua mensagem. Andrés viveu-os intensamente do meu lado. Satisfez os meus desejos e ficou comigo sempre. Acho que foi por essa altura que nos conhecemos profundamente. Eu não sabia de cor o som do seu bocejo nem ele sabia a maneira irritante que tenho de cortar o bife. Eu não sabia que ele era capaz de aguentar dois minutos debaixo de água nem que tinha jeito para a pintura. Ele não me caracterizava como uma pessoa forte. Agora sabemos. Só tenho pena que tenha sido demasiado tarde. Resta-nos a lembrança.
Um dia, acordei cedo e olhei pela janela. Senti uma necessidade inexplicável de cheirar papaias. O certo é que nunca gostara especialmente desse fruto mas nesse dia, àquela hora, era tudo o que eu mais desejava. Acordei Andrés e sussurrei-lhe o meu desejo. Ele levou-me à casa de banho, despiu-me e admirou-me como se o meu corpo ainda fosse atraente. Eu senti-me florescer apesar do terreno estéril que era a leucemia. O meu companheiro deu-me banho e olhamo-nos nos olhos inúmeras vezes. Despedidas. As despedidas começaram aí, com esses olhares de ternura e súplica. Ele pedindo-me para não partir; eu pedindo-lhe que me deixasse ir pois não aguentava mais o sofrimento.
- Para onde me levas? - pergunto-lhe, curiosa. Andrés enxugava os meus poucos e quebradiços cabelos com uma toalha macia.
- Realizar o teu desejo - disse-me, somente. Eu fechei os olhos e saboreei a conquista de uma vida plena. Curta mas farta.
Andamos de carro e atravessamos Chihuahua por inteiro. Chegamos a uma enorme plantação, Andrés estacionou o carro e carregou-me no colo até à árvore mais frondosa. Eu deitei-me por debaixo dela e inspirei fundo. Era morno o ar. Morno e de uma textura quase amanteigada. Parecia escorrer suavemente para dentro de mim. Doce, muito doce, ao ponto de quase enjoar mas, depois, tornou-se mais agradável e habituei-me, finalmente, àquela fragrância estonteante.
- Consegues cheirar? - perguntei ao meu marido.
- Cheirar o quê?
- Não sentes? É tão forte. Como podes não sentir? - e ele respondeu com um abanar de ombros.
Não entendi como é que o cheiro não lhe invadia as narinas da mesma forma que a mim. Eu sentia-me cheia como se tivesse comido um prato exagerado. Mesmo já me sentindo familiarizada com a quentura daquele aroma, o meu estômago fraco revirava e senti o vómito subir-me à garganta inúmeras vezes. De todas as vezes engoli e o azedo misturou-se com o demasiado doce. A minha cabeça girava, contendo dentro dela a essência exclusiva daquele momento. Não havia lembranças nem problemas, somente aquele perfume cru. Fechei os olhos e inspirei mais uma vez, uma respiração cansada pela enfermidade, numa tentativa de apanhar uma outra brisa, com outros cheiros. Porém, foi impossível. Aquela golfada de ar soubera-me exactamente ao mesmo e eu abri os olhos, encarando o ambiente à minha volta que, por razões que eu não conseguia discernir, me parecia estupidamente familiar.
Uma gota de suor deslizou até à minha orelha e Andrés beijou-me a face. Senti-o molhado e não entendi porquê. Na verdade, a sua presença era quase imperceptível. Ele tocava-me a alma de tempos a tempos, mas apenas por momentos fugidios. Eu estava noutra. Sentia-me num nirvana cujo único camarada que me dava sinais era aquele cheiro meloso.
De repente, sem eu contar com isso, ele fez-se acompanhar por uma luz forte e brilhante. Não chegava a doer nos olhos mas impedia-me de mantê-los abertos por muito tempo. Questionei Andrés sobre isso e não obtive resposta. Eu estava realmente a ficar chateada e incomodada. Não queria mais aquele cheiro. Estava farta de tanta doçura. Desejava apenas ir para casa e descansar. Pedi-o ao meu marido e novamente qualquer coisa molhada caiu-me na face.
- Estás em casa, querida - ouvi, muito longe, quase do outro lado do mundo. Apeteceu-me rir da resposta mas se o fizesse vomitaria. Andrés sempre fora muito brincalhão.
Tomei coragem e abri os olhos. Estava na hora de encará-lo e pedir-lhe seriamente que me levasse para casa. Quando o fiz, ele olhou-me avidamente, mal podendo crer na sua sorte. E eu vi o tecto do meu quarto. A minha cama. As mesas-de-cabeceira. O vestuário e as minhas jóias. Andrés sorriu de um modo agarotado que o tornou quase perfeito. Senti os olhos revirarem e lutei contra isso. Lutei tanto mas tanto e fracassei. Eles desviaram-se para outro sítio qualquer, um lugar desconhecido, e aquele cheiro que me perseguia desde de manhã abarcou-me toda, sem deixar espaço para mais nada. Perdia as minhas forças e, teimosa, fingia acreditar que ainda tinha alento suficiente para apertar a mão de Andrés. Deixei de sentir, a minha pele tornou-se insensível, a minha boca perdeu o sabor, os olhos cegaram e os ouvidos deixaram de ouvir. Ficou tão-somente o bálsamo da morte. Doce, quente, pesado, intenso e eterno.
Passaram-se segundos ou anos até recuperar tudo de novo. Eu não sei ao certo, perdi a noção do tempo. Quando voltei a mim, vi-me estendida na cama, pálida e fria, feia como nunca me achara. Fui até lá e abanei o corpo, pedi que me sugasse de novo para dentro dele. Ainda não era a hora, ainda não era. Eu, que tinha a certeza da minha morte, que tanto delineara os meus dias, deixei-me seduzir por um cheiro miserável que me fez crer a minha salvação. Não me despedi de ninguém, não fiz tudo o que pretendia e enfrentei o meu pior receio. Morrer sem saber que morrera.
Andrés desaparecera, toda a gente desaparecera, ficando somente uma parte de mim, petrificada sobre lençóis brancos, vestindo uma camisa branca que se confundia com a minha própria pele. E de repente, gritei:
- Olhem para mim! Olhem para mim! Não me deixem só.
Ninguém ouviu, ninguém se importou, ninguém apareceu. O medo de ter olhares curiosos sobre mim tornara-se, agora, uma súplica. Eu precisava disso, precisava para poder acreditar que aquela era eu, e, assim, poder partir. Continuei sozinha, metade lá, metade cá.
O cheiro que me acompanha desde então, tornou-se parte de mim. Não me preenche, não me consola nem me acompanha. Vive somente dentro de mim. E eu continuo dividida.
Publicado, originalmente, na Revista Magazon.