Conto originalmente publicado na rubrica Estórias que matam da Infektion Magazine, a 19 de Junho de 2011.
A pequena insurgia-se no canto vazio da sala, apertando os braços gorduchos e revendo uma série de consultas médicas que só lhe traumatizavam os sonhos: o dos dentes, o dos olhos, o da garganta, o do pé partido. Este, dissera-lhe a mãe, era de tudo e esse tudo afigurava-se um tanto monstruoso; o tudo incluía partes do corpo que ela não queria que investigassem, embora ela soubesse, muito bem, que estavam doentes. O médico chamou-a e ela cobriu as orelhas com as mãos, tentando, inutilmente, abafar os sons das vozes e os burburinhos próprios de um consultório. Lá dentro cheirava mal: como o chão velho da cozinha da avó Celeste - um cheiro a madeira podre e a uma mistura nauseante de molhos de assados e espinhas roídas do carapau que, sem querer, saltavam dos pratos e espetavam-se nas farpas levantadas e, ainda, aos sucos doentes dos escarros do avô que não tinha educação para cuspir para um guardanapo, ou a goivo proveniente de um festim de larvas agrupadas aos molhes, nos armários húmidos. Ou, mais secretamente, uma fragrância mórbida que só ela conhecia: as amálgamas de líquidos transparentes, esbranquiçados e rosados que sobravam nos lençóis, depois… depois... depois de coisas que não queria trazer à tona da sua memória. Era; aquela sala tinha o mesmo cheiro. E isso incomodava-a porque sabia, mesmo sendo inocente, que era um odor errado, que ali só se deveria sentir bálsamos medicinais. Encolheu-se ainda mais, escondendo o rosto nos caracóis miúdos. Vem cá, vem cá, não dói nada. Odiava essa expressão que só servia para recordar que podia doer, mesmo que minimamente. Não obedeceu ao médico e encarou os olhos chateados do pai. Se ao menos viesse com a mãe, se ao menos pudesse socorrer-se com o olhar plácido da sua querida mãe. Inês, não ouves o Sr. Dr.?, vem já! Sentiu um ódio peganhento que se colava ao céu-da-boca, impelindo a língua a movimentos estranhos, quiçá a deitá-la para fora e, assim, exibir uma figura de rapariguinha mimada. Conteve-se e escondeu a boca no braço, lambendo-o como um gato, sentindo a língua tropeçar nos pêlos fininhos que o adornavam. Inês, não repito! O pai parecia um bicho enjaulado, de narinas inchadas e a camisa bastante aberta, expondo um peito escuro e marcado por cicatrizes de uma adolescência rebelde. A menina levantou-se e andou até ele, colocando os braços em volta da sua cintura. O pai elevou-a no ar e ela beijou-o, no rosto, amordaçando-lhe as fúrias. Deixou-se deitar na marquesa e apertou os olhos com tanta força que se sentiu invadida por uma cegueira branca. Relaxa, disse-lhe o médico. Mas ela não relaxou. O corpo retesou-se. Relaxa, dizia-lhe o pai. Mas ela não relaxava. Sentiu um objecto estranho invadir as bordas da sua carne magoada. Como sentira, tantas vezes, na cama, um objecto duro invadir a rosa que tinha entre as pernas. Comeu a dor como tantas vezes suportara dores semelhantes. Sentiu o corpo adormecer, levado por uma maré de movimentos leves que sussurravam, baixinho, melodias de dormir. Deixou-se estar daquele jeito, quieta, entre o limbo da dor e da letargia. Então, Dr.?, perguntou o pai. O aborto está feito; para a próxima tenha mais cuidado. E a menina vomitou, horrorizada pela ideia de haver uma próxima vez.