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Out 11
publicado por paraisobiblioteca, às 09:00link do post

Senti um leve escaldão na pele. Nada que magoasse mas que incomodava. Levantei as pálpebras e bati com os olhos nele. Ele admirava-me. E nesse olhar não havia qualquer tipo de contenção. Ele olhava-me com a vontade de um alcoólico. Era como se me bebesse. Deixei de me sentir mulher e passei a fazer parte dos vinhos. E quanto mais ele me olhava, mais me sentia bebida. Não sei, sentia-me deslizar pela sua garganta, dividindo-me pelas suas veias. Eu era o tinto que corria no seu sangue. Depois, com um piscar rápido, o seu olhar mudou. Já não era o de uma fúria sedenta de quem precisa colmatar um vício. Não, agora era mais requintado. Já não se tratava de uma necessidade mas sim de um prazer. Confesso que me senti invadida. Ele degustava-me com os olhos pequenos. De vez em quando sorria, como se cumprimentasse o chef pela magnitude do prato. É isso mesmo, passei de bebida a refeição principal. O comboio parou, nem sei em qual estação. Eu tentava arranjar maneiras de não encarar a satisfação com que ele me olhava. E, no entanto, senti que não havia necessidade em pedir para parar. Na verdade, estava a gostar do galanteio e sei que, mesmo que o confrontasse, o olhar não mudaria. Ele estava faminto, não sei ao certo de quê, mas a sua fome não deixaria de transparecer no castanho dos olhos. Era um homem bem mais velho do que eu. Isso, só por si, bastaria para que eu resmungasse para o ar palavras de desconforto. Porém, não aconteceu. Ele tinha em mim um poder quase sobrenatural. Fechei os olhos, numa tentativa de abstracção, e encostei a cabeça ao vidro. Foi aí, como se os sons se calassem, que eu senti o ressoar da sua respiração. Forte, pesada, a respiração de um homem com necessidades íntimas. Corei. Não sei porquê mas corei. Poderia muito bem comparar aquele respirar a um toque de devaneio, quase de pecado. Abri os olhos, tive de os abrir. Estava a sufocar em vários sentimentos. Ele continuava ali, a encarar-me, a lamber-me com a vista. Sobremesa. Olhava-me como se eu fosse uma fatia de bolo deliciosa. Foi o olhar que mais me incomodou. Estremeci, até. Ou eu estava muito enganada ou aquele homem acabara de se apaixonar por mim.

- Hannibal Lecter - disse-me, estendendo a mão grande. - Muito prazer.

 

Publicado, originalmente, na Comunidade Literária Benfazeja.

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